Podcast Café Brasil Premium - 744 - A sinalização de virtude

Data de publicação: 16/11/2020, 11:55

Você já ouviu alguns ditados como “faça o que digo, não faça o que eu faço” ou “muito papo, pouca ação” ou ainda “walk the talk”? Tudo isso tem a ver com se comprometer com aquilo que você diz que é. E um fenômeno curioso tem sido cada vez mais observado na sociedade. É antigo, mas ganhou nome novo: sinalização de virtude. É por aí que vamos hoje.

Bom dia, boa tarde, boa noite. Você está no Café Brasil e eu sou o Luciano Pires.

Posso entrar?

https://www.youtube.com/watch?v=lDtwOMVpKBo

Em meados dos anos 90, quando eu trabalhava numa multinacional, a empresa promoveu um curso de marketing na Universidade de Michigan. E lá fui eu. Eram professores da universidade intercalados com diretores da empresa. Numa apresentação de um dos diretores, fiquei curioso. Ele falava de como a empresa estava abraçando a questão da diversidade. Veja bem, estou falando de 1996, muito antes da diversidade virar modinha. Ele falava da importância da empresa contratar mais pessoas de grupos específicos, imigrantes, latinos, asiáticos, pretos, mulheres. E enquanto ele falava, eu fui achando aquilo muito legal. Pô, é isso mesmo. Temos de abrir as portas para que mais visões de mundo se integrem. Isso só pode fazer bem.

Pois é. Mas no final da apresentação o diretor deu uma patinada. Disse algo como: "Temos de ter representantes desses grupos dentro da empresa, pois a representação deles na sociedade vem crescendo. Se não tivermos mais gente como eles trabalhando conosco, eles vão comprar de outras empresas que têm!"

Pô. Peraí. Então não era uma questão de ser humanista, de entender que todos são iguais, de dar a mesma chance, não importa a origem, raça ou cor?

Não. Era para preservar os negócios. Mas isso jamais seria dito da porta pra fora.

Eu tinha tomada contato, quase trinta anos atrás, com aquilo que seria mais tarde conhecido como “sinalizar virtude”.

https://www.youtube.com/watch?v=zkfJZK-2K_4

Olha só... Rita Lee com Erva Venenosa, a versão de Poison Ivy... muito apropriado.

Uma virtude é uma característica ou qualidade considerada moral ou boa. O cristianismo propagou muito a ideia da virtude, incluindo humildade, gentileza, bondade, caridade. Sempre em oposição aos sete pecados capitais.

Quem é que não quer ser considerado uma pessoa virtuosa? Acho que só psicopatas, não é?

Bem, em meio à guerra cultural, especialmente nestes dias de intensa discussão sobre assédio moral e sexual, imigração e preconceitos, surgiu com força o termo “sinalizar virtude”. Ele vem de “virtue signaling”, que tem se tornado popular por políticos, celebridades e até mesmo empresas.

A definição no dicionário Cambridge diz: tentativa de mostrar para outros indivíduos que você é uma pessoa boa, por exemplo, expressando opiniões que serão aceitas por eles, especialmente nas mídias sociais.

No exemplo que dei daquele diretor, para o mercado seria apresentada a ideia de que a empresa estava dando oportunidades para todo mundo! Cara, que empresa bondosa, generosa... humana! Mas nos bastidores, o negócio era sinalizar virtude para seus clientes, que assim continuariam consumindo seus produtos.

Faça um esforço hoje à noite e ligue a TV. Dê uma olhada nos comerciais e veja a quantidade de empresas sinalizando virtudes.

A seguradora quer sua saúde. O banco quer seu bem. A montadora quer sua segurança. A cervejaria quer sua alegria. A companhia aérea quer seu lazer. A operadora de telefonia quer que todo mundo tenha acesso.

Nenhuma delas quer seu dinheiro, viu?

E assim, por todo lado você verá manifestações de empresas que promovem, através de seu marketing, a ideia de que são ambientalmente responsáveis, amam a diversidade, lutam contra a desigualdade. É tanta demonstração de virtude que não sei como o mundo não é um paraíso. A moda do “propósito” ajudou muito. Nenhum banco fala de dinheiro, você reparou? Só falam de como são generosos e preocupados com seu bem estar, de sua família e do mundo. Eles querem dizer que são generosos, gentis, decentes e....virtuosos.

Sinalizam... virtudes.

Políticos fazem isso há séculos. Dizem que pode haver alma honesta igual, mas melhor, jamais. Dizem que querem o poder para ajudar os pobres e humildes; que vão gastar os milhões de dinheiro público para proteger os que mais precisam, não interessa se o gasto será eficiente... são honestos, sinceros, decentes e... virtuosos.

Sinalizam... virtudes.

Não interessam as consequências, o que vale são as boas intenções.

Quando sua sobrinha grita nas redes sociais que odeia automóveis ou não come carne, ela está dizendo que, diferente de você que gosta de automóveis e come carne, ela se preocupa com o meio ambiente. Portanto ela é mais boa, mais legal que você. Mais virtuosa, seu malvado.

Olhe em volta e você verá que a sinalização de virtude normalmente consiste em dizer que você odeia coisas. Essa ênfase no ódio desvia a atenção do fato que você na verdade está dizendo como você é bom! Ou boa! Se você dissesse francamente que se importa com o meio ambiente ou com os pobres ou com os animais, mais do que as outras pessoas, as pessoas acharão que você é vaidoso ou está se achando. Ficaria óbvio demais.

A raiva e a indignação disfarçam sua arrogância.

[tec] COMENTÁRIO DO OUVINTE [/tec]

Grande Ronaldo, esse passarinho aí no fundo é sensacional. Olha, a participação dos ouvintes é aberta para qualquer um. Não precisa ser da Confraria ou do Premium, não. Eu tenho dado prioridade para livros que são inéditos no Brasil, por isso não fiz nada sobre o livro do Harari. Esse ponto que você levanta das linguagens de cada ecossistema é fundamental para explicar como as audiências se distribuem pela internet, sempre haverá um polo oposto ao seu que achará a minha linguagem um horror... é a vida, né?  Sobre onde enquadrar o Café Brasil, se em cultura ou literatura, enquadre onde você quiser, meu caro. Desde que continue vendo valor no que nós fazemos aqui.

Grande abraço

https://www.youtube.com/watch?v=3RZPjxnVJ40

Ah... pra falar de virtude tem de ser com um virtuoso, não é? Você ouve uma sensacional interpretação do tango clássico de Carlos Gardel, Por Una Cabeza, pelo Yamandu Costa... cara, sou capaz de ouvir isso o dia inteiro.

A origem do termo “sinalização de virtude” é controversa. O jornalista inglês James Bartholomew popularizou o termo num artigo que ele publicou em 2015 no The Spectator, publicação conservadora britânica. Bartholomew explicou direitinho em seu artigo chamado “Easy virtue”, ou Virtude fácil.

Ele pergunta: quer ser virtuoso? Dizer as coisas certas de forma violenta no Twitter é muito mais fácil que a gentileza e a bondade de verdade.

E, normalmente, os sinalizadores de virtude odeiam fatos e evidências. Eles precisam demonstrar bondade. Eles querem salvar o mundo, e a virtude está nesse desejo. Ai de você se disser que, por exemplo, quer propor alguma mudança no SUS... o mundo cairá em sua cabeça, acusando-o de fascista que quer acabar com a assistência para os mais humildes. Não interessa que sua proposta tenha consistência e potencial para melhorar o atendimento. Você está usando fatos e evidências contra gente sonhática.

E assim as caricaturas ganham espaço na sociedade, sendo usadas para desviar a atenção de dados, da realidade. Você cria uma caricatura, um rótulo e, ao pregá-lo em seu adversário, consegue, em vez de discutir o assunto com profundidade, aquele argumento definitivo da plateia: o kkkkkkkkk.

A audiência ama caricaturas e rótulos, porque eles a livram do trabalho de ter de processar a realidade. Rótulos atraem os preguiçosos, que se transformam numa turba pronta para linchar o próximo fascista. Aliás, o que é “fascista”, mesmo?

Cara, é uma delícia mostrar suas virtudes em tribo, sentir que sua visão do mundo é compartilhada com mais gente... fazer parte da patota, não é? Bote a raiva pra fora, divirta-se! É muito fácil ser do bem.

Demonstrar superioridade moral é uma forma de se diferenciar dos outros. O problema é quando os outros, bote um rótulo aí. Fascistas, por exemplo. O problema é quando os fascistas concordam com você. Para mostrar que você é melhor que eles, é preciso defender mais, ou diferente. Se você defende aumento do salário mínimo e o fascista também, você precisa demandar um aumento maior que o dele. Quando se trata de bondade, sua oferta nunca pode ser superada. Pô, mas de onde virá o dinheiro? E se o salário mínimo crescer mais, muito mais gente perderá o emprego!

Não interessa. Interessa exibir o desejo, a bondade.

Isso é sinalizar virtude.

Somos um país de formação cristã, onde o orgulho é considerado pecado. Quem se diz “o tal” é imediatamente olhado com desprezo. Por isso muita gente acha esse sinalizar virtude, algo desagradável, irritante e ridículo.

Quem disse que a moça lá que resolveu não comer carne é mais virtuosa que eu? Ela, não é?

A quantidade de gente se gabando direta e indiretamente de suas virtudes é sinal de que não existe vergonha de parecer arrogante. Aliás, não existe nem mesmo a reflexão sobre a possibilidade de parecer arrogante. E a turma manda bala no Twitter, que é um paraíso para sinalizar virtude. Afinal ali, com 140 caracteres, você não precisa elaborar argumentos refinados. Basta repetir um rótulo. Uma hashtag. Basta destilar o ódio da moda. Pronto. Ganhou pontos com a galera.

Eu comecei este programa contando um caso de 1996. De lá para cá, diversas formas de chamar essa gente que sinaliza virtudes foram usadas. Houve o “poser”. Há o “esquerda caviar”. E houve o “radical chic”, criado por Tom Wolfe em 1970, para designar celebridades que abraçavam causas bonitas, mas sem comprometimento com elas. Tá cheio de radical chic por aí. De quando em quando soltam um vídeo no Youtube, tentando levantar uma hashtag e passando vergonha. A diferença pro sinalizador de virtude, é que ele não tem de ser uma celebridade.

Qualquer que seja o termo, será sempre pejorativo. Sinalizador de virtude é um insulto para quem veste a carapuça. É claro que existem pessoas que defendem causas que acreditam e são comprometidas com elas. Mas essas estão ocupadas demais fazendo acontecer para ficar disparando ódio pelo Twitter.

Distinguir entre as expressões de indignação genuínas e as estratégicas, obedece a uma teoria: são dois os sistemas psicológicos que dão forma às expressões de ultrage moral. Um é um sistema genuíno, que avalia a transgressão à luz de nossos valores morais e determina o nível de ultraje que sentiremos. O outro sistema é o estratégico: que avalia o contexto social no qual estamos inseridos e determina o nível de ultraje que parecerá melhor para os outros.

As expressões de indignação autênticas, envolvem apenas o primeiro sistema. Sinalização de virtude envolve o segundo.

Mas pesquisas recentes foram mais fundo e determinaram que a indignação está sempre ligada à nossa reputação. E outras palavras, mesmo a indignação genuína, pode ser estratégica. Queremos parecer bons.

Mesmo quando não somos observados, nosso desejo de parecer bons aos outros, impacta em nosso comportamento. Temos uma voz interior o tempo todo dizendo: “se tivesse alguém olhando, eu pareceria virtuoso?”

Isso quer dizer que sempre nossa indignação é influenciada pelo desejo de parecer virtuoso. É por isso que pulamos no pescoço de quem diz uma frase que vá contra nossos princípios. Mesmo que não tenhamos visto a frase num contexto.

Em resumo: nem sempre demonstrações de indignação são sinalização de virtude. Podem ser, sim demonstrações verdadeiras, mas que no fundo tem a ver com um desejo legítimo de parecer bom.

Por isso é fundamental observar a atitude, a razão da atitude a circunstância. Ou você vai sair acusando gente genuinamente boa de sinalizador de virtude.

 https://www.youtube.com/watch?v=lDtwOMVpKBo

É assim então, com Meu Bem, Meu Mal, com uma levada meio blues de Caetano Veloso, que vamos saindo... Tá entendido, então? Sinalizar virtude é quando um indivíduo, uma companhia ou organização adotam uma ideia para parecer bem aos olhos dos outros. Eles não acreditam verdadeiramente na causa que suportam com tanto estardalhaço. Eles agem de má fé, pois têm um motivo oculto.

Fique esperto aí você. Antes de manifestar sua indignação, verifique se ela é genuína ou é estratégica.

Se é só estratégica, junto com a raiva você vai passar vergonha.

O Café Brasil é produzido por quatro pessoas. Eu, Luciano Pires, na direção e apresentação, Lalá Moreira na técnica, Ciça Camargo na produção e, é claro, você aí ó, completando o ciclo.

De onde veio este programa tem muito mais, especialmente para quem assina o cafebrasilpremium.com.br, nossa “Netflix do Conhecimento”, onde você tem uma espécie de MLA – Master Life Administration. Então acesse cafedegraca.com e experimente o Premium por um mês, sem pagar.

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Para o resumo deste programa, acesse portalcafebrasil.com.br/694.

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Para terminar, uma frase de Stewart Staford:

Não apenas deseje um bom dia para uma pessoa. Faça algo para que o dia dela seja melhor.

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